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Teatral-Mente Opinando 13 | Gisberta, um grito de alma

Cinema São Jorge | Sala Montepio. 24 de Agosto de 2014 (17h). Sala cheia.

Gisberta teria tudo para ser um monólogo chocante, trágico e até violento... Mas não o é! Evadiu-se dessa quase condição e tornou-se, ao invés disso, num texto verdadeiramente belo e comovente, onde as palavras se confundem com os gestos, que as acompanham, no confronto de uma mãe com a morte do seu filho, e que usa um tema do passado - mas que não ficou lá encerrado - para espelhar o presente, colocando-o na base de um tema tão badalado nos dias que correm: o preconceito. É, por todos os motivos e mais alguns, um trabalho de escrita louvável que soube soltar bem as amarras que o prendiam a um texto trágico, transpondo-o para o campo do belo.
Rita Ribeiro surpreende o público desde o primeiro minuto e prova ser um dos maiores valores dos nossos palcos, apresentando-se num registo totalmente oposto aquele onde o público se habituou a vê-la e aplaudi-la. Em Gisberta, a actriz dá vida, corpo e alma à mãe da transsexual brutalmente assassinada por um grupo de jovens, na cidade do Porto (um acontecimento que remonta a 2006) e confronta-nos com esse desaparecimento. A sua interpretação não se esgota no mero debitar de palavras, uma falácia em que muitos acabam por cair quando se trata de um monólogo... Rita Ribeiro vai para além disso! Não interpreta e muito menos "imita" a mãe de Gisberta... Habita dentro dela, dentro do seu ser, e passa ao público, através de sinceras palavras e de gestos sóbrios mas preponderantes, o sentimento de uma mãe que acaba de perder uma parte de si, ainda que seja uma passagem pálida, já que essa é uma dor que só se sente quando nos deparamos com ela nos nossos dias. No grau de contenção perfeito, numa interpretação brilhante e equilibrada, a actriz perpassa a imagem da mater dolorosa, longe da vitimização, que seria a receita errada para o tema, mas apoiada na sua culpabilização e na dificuldade de entender o porquê de tudo aquilo.
Num texto muito bem equilibrado, que sabe ser intenso na dose certa e doce no momento exacto, assistimos a uma mãe que, perante um estranho - o jornalista que não aparece em cena, mas que marca a sua presença nos apontamentos projectados - , se confronta, ainda que com alguma renitência, com o desaparecimento do seu filho, com o seu sentimento de culpa no sucedido e que culpabiliza uma entidade divina em que ela acreditava mais que tudo mas que a atraiçoou brutalmente, deixando-a a pairar num vazio difícil de preencher.
Com um cenário bastante discreto mas ultra-eficaz, a peça apoia-se, também, em breves apontamentos projectados - alguns violentos e chocantes até - que nos ajudam a localizarmo-nos, servindo de fio condutor aos vários subtemas - tudo aquilo que girava à volta de Gisberta - que surgem na entrevista, e que ajudam a contrabalançar a contenção que é inerente ao discurso da mãe. O facto de o cenário ser despojado de grandes adereços ajuda a que a interpretação de Rita Ribeiro se revele ainda mais versátil e admirável, pelo facto de conseguir concentrar em si todas as atenções, sem cessar a emoção e mantendo o espectador colado à cadeira ao longo de uma hora e um quarto de um espectáculo que se inscreve numa simplicidade visual total e que apenas pede disponibilidade para ser ouvido, para ter acesso à nossa alma e que se propõe a mudar, abrir e libertar consciências, missão plenamente conseguida.
Numa encenação - assinada pelo autor Eduardo Gaspar - bastante eficaz, Gisberta não deixa que nenhum espectador saia da sala tal como entrou e deixa-nos a sensação de que a vida é curta demais para julgamentos desnecessários, sendo nossa obrigação respeitar cada qual como é, não esquecer a injustiça e tentar impedi-la. Afinal de contas, o mais importante é valorizar aqueles que temos à nossa volta, sem reservas, sem julgamentos, só com amor. · Gisberta > Texto e enc. de Eduardo Gaspar; produtora desconhecida; com Rita Ribeiro. Cinema São Jorge, Avenida da Lierdade 175, Lisboa; Qui. a Sáb. às 22h e Dom. às 17h00. 12€. Depois de Lisboa, em digressão.