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Teatral-Mente Opinando 16 | Coração do Parque Mayer bate mais forte com "Tudo Isto é FaRdo!"

Teatro Maria Vitória. 20 de Dezembro de 2014 (16h30). Sala cheia.

Chama-se Tudo Isto é FaRdo! a Revista que o Maria Vitória tem no seu cartaz desde Outubro do ano transacto e, na verdade, o título apenas faz alusão à actual situação económica e social do país, porque o espectáculo em si é tudo menos um "fardo" para quem se senta na plateia. Pode bem dizer-se que esta é mais do que uma boa Revista! É a melhor apresentada desde há vários anos naquele teatro, tratando-se de um excelente, diversificado e equilibrado espectáculo, impecável de ritmo, alegre nas suas cores vivaças e na música divertida, onde todos os elementos se conjugam para conseguir um objectivo: uma Revista bem popular, bem-disposta, moderna e desempoeirada. E conseguiram!
Lá está tudo aquilo que o público reclama no velhinho e histórico palco do Maria Vitória. A graça, a crítica, o luxo, a beleza, as plumas, a música saborosa que se cantarola à saída do teatro, enfim, todos os condimentos tão próprios de uma Revista à Portuguesa bem temperada. Há muito que a nonagenária sala do Parque Mayer não tinha no seu cartaz uma revista de tanta qualidade, tão alegre, tão atraente e tão alfacinha!
Cabe aos autores um bom punhado da qualidade que a peça apresenta e do seu êxito. Há que elogiar as felizes ideias que Mário Rainho - homem de espectáculo de méritos mais que provados e comprovados e que, cumulativamente, dirigiu, encenou e coordenou toda a peça com mestria (tal como se comprova em palco), numa entrega total ao projecto - , Flávio Gil, e Nuno Nazareth Fernandes passaram para o papel, com esfuziante graça, incrível poder de observação do quotidiano, mordacidade, frescura e todos os ingredientes que este género dificílimo requer, respeitando o seu menu tradicional.
A par do texto, a música tem uma importância fulcral em todo o espectáculo e nesta produção os créditos não foram deixados em mãos alheias, reunindo-se um trio de luxo - Eugénio Pepe, Nuno Nazareth Fernandes e Carlos Dionísio - que criou algumas das músicas mais orelhudas que se apresentaram em palco nos últimos anos.
À cabeça do elenco surge Fátima Severino, que regressou ao Maria Vitória, entregando-se de corpo e alma. Um regresso feliz, de uma actriz popular e característica que imprime em todas as suas personagens a graça e a genica que lhe são tão próprias, como se comprova sobretudo no seu número de apresentação - Manif da Mulher Só -, a sua interpretação mais conseguida e aplaudida. A seu lado, Paulo Vasco volta à cabeça do cartaz. O público do Maria Vitória, já habituado à sua presença, dispensa-lhe o maior carinho quando ele entra em cena , mercê da sua enorme capacidade de comunicabilidade com a plateia. Em Tudo Isto é FaRdo! couberam-lhe números talhados à sua medida, festivais de gargalhada que o actor bem defende, destacando-se principalmente no seu Frei Sacristão, rábula totalmente conseguida, ou no Quadro de Rua, que ele tão bem chefia. A seu cargo está ainda o excelente texto de homenagem (mais que justa) a Henrique Santana, nome maior dos palcos, que ao Maria Vitória emprestou toda a sua mestria, e um António Calvário que leva o público ao rubro.
O jovem Flávio Gil protagoniza os momentos altos do espectáculo, desdobrando-se em mil e uma personagens que veste com distinção, provando, uma vez mais, que o palco é o seu habitat natural e que foi feito para estar na ribalta, sob a luz dos projectores. Abre o espectáculo e, a partir daí, leva o público consigo, fazendo-o rir, principalmente com o seu hilariante Marinho, o divertido Paciente ou com o indescritível Artur Garcia, extraordinárias composições; ou emocionando, como acontece no número O Rapaz que Roubava Livros, um dos momentos altos da peça. Ao seu talento nato para a representação e canto, alia a sua garra, a graça, a força, a simpatia, o amor ao Teatro e a sua juventude, firmando-se como um dos mais seguros valores dos nossos palcos. Faz-nos acreditar que o Teatro de Revista está vivo e de perfeita saúde e tem futuro, porque todo ele é espectáculo, é palco! Que bom é ver o seu talento tão bem aproveitado e o público a aplaudi-lo efusivamente! Tanto mais se poderia dizer em louvor do seu trabalho, mas esse tanto continuaria a ser pouco, face ao seu enorme talento e à sua entrega e paixão pelas tábuas.
Vanessa Alves é a nova Atracção do Fado. Jovem, bonita, simpática e com uma melodiosa voz, foi brindada com dois fados. Se tivéssemos uma almejada máquina do tempo e pudéssemos volver até aos idos anos 40 ou 50 e transpor para qualquer palco alfacinha, os dois momentos em que ela tão bem (en)canta - Eu Hoje Acordei Lisboa e O Tejo e as Gaivotas - saltariam de imediato para as ruas e hoje seriam antológicos. Ambos reúnem letra de Mário Rainho e música de Nuno Nazareth Fernandes, a nata do fado, e ambos ficam na boca e no ouvido do público. Vanessa Alves canta, o público cola-se à cadeira a ouvi-la, no fim é um mar de aplausos, como seria de esperar. Há qualquer coisa de misterioso e mágico nestes momentos de fado e nessa excitação do público ao ouvir uma voz fresca e portentosa entoar aquilo que é tão nosso.
Élia Gonzalez é mais um caso de talento, que, de revista para revista, aperfeiçoa as suas muitas faculdades, procurando sempre fazer mais e melhor. Jovem e desenvolta, desenha as figuras que lhe cabem, com cuidado e respeito pelo público que a acarinha, e nesta Revista tem prova de fogo ao chefiar com mestria o Quadro de Rua, entre outros conseguidos momentos.
A completar o elenco encontramos um leque de jovens actores, todos eles com vontade de agradar, dar de si ao palco, com o respeito que ele merece e provar que em futuras produções são talentos a aproveitar e estão prontos para crescer.
Filipa Godinho é uma revelação! Simpática, popular e talentosa, a sua agradável presença em palco é motivo de elogios, mostrando nas suas prestações o seu enorme potencial. Sara Inês é mais uma estreante nas andanças. Bonita, agarrou bem as personagens que lhe distribuíram e marca presença em palco.
Nuno Pires transita do elenco da Revista passada e sobre degraus na sua carreira, mostrando que é dono de talento, que o passar dos anos e a experiência irão aperfeiçoar. Por último, Diogo Costa, que, apesar do esforço e da dedicação tem ainda muito caminho a percorrer e algumas falhas por limar, apesar de ser notória a sua evolução de projecto para projecto.
Há ainda que dar destaque à luxuosa montagem da revista da catedral! Faz tempo que o Maria Vitória não nos apresentava uma revista tão bem "emoldurada"... Os cenários de Avelino do Carmo, José Costa Reis, Helena Reis e Eduardo Cruzeiro, salvo raras excepções, são verdadeiras pérolas da cenografia revisteira, sobressaindo o quadro O Tejo e as Gaivotas, que possui um cenário deslumbrante, da autoria de Costa Reis. Faustosos na dose certa, vivaços nas suas cores e modernos nos seus traços... Afinal de contas, os olhos também comem e uma montagem grandiosa é essencial. Mas espectáculos perfeitos não há e, no meio de todo o conjunto, diga-se em abono da verdade, sobressaem menos os figurinos - talhados a partir das criações de Cristina Lima - , que destoam dos grandiosos cenários, apesar de alguns dos números disporem de um guarda-roupa simples mas de bom gosto, como é o caso, por exemplo, dos dois momentos de fado.
José Carlos Mascarenhas regressou nesta temporada ao Maria Vitória, assumindo o cargo de assistente de encenação e coreografando todo o espectáculo, sem grandes exuberâncias. Todas as coreografias cumprem bem e são executadas pelo grupo de dança "Amazing Dancers", que se destaca pela jovialidade, desenvoltura e profissionalismo, sobretudo na Abertura do 2º Acto, onde é homenageado Charlie Chaplin.
Uma palavra de apreço e carinho ao empresário Hélder Freire Costa que, contra ventos e marés e numa luta titânica, continua a manter de pé o velhinho Maria Vitória, num acto de amor ao Teatro, insuflando ainda alguma vida no Parque Mayer, o coração de Lisboa, e festejando com este Tudo Isto é FaRdo! os seus 50 anos de Teatro e fazendo o "seu" palco voltar às brilhantes produções.
Tudo Isto é FaRdo! é portanto um  projecto de amor, - amor esse que se nota em palco, fruto da união de apaixonados da Revista que empregaram toda a sua dedicação e a sua garra nesta causa e que levaram a cena uma revista hilariante, que serve o Teatro Português, proporcionando quase três horas de riso total e feliz, onde se conjuga o sonho ,que tanta falta faz, e a alegria - e merecedora de salas cheias, ovações de pé e todo o carinho do público.
À saída da Catedral da Revista levamos connosco algumas das músicas no ouvido, uma generosa dose de boa disposição e felicidade e, sobretudo, o sentimento de que o coração que ainda bate no Parque Mayer voltou a ter mais força!
E viva a boa Revista, bem à Portuguesa! · Tudo Isto é FaRdo! > De Mário Rainho, Flávio Gil e Nuno Nazareth Fernandes; enc. de Mário Raínho; figurinos de Cristina Lima; cenografia de Avelino do Carmo, José Costa Reis, Helena Reis e Eduardo Cruzeiro; coreografia de José Carlos Mascarenhas; música de Eugénio Pepe, Nuno Nazareth Fernandes e Carlos Dionísio; produção Hélder Freire Costa; com Fátima Severino, Paulo Vasco, Flávio Gil, Vanessa Alves (Atracção do Fado), Élia Gonzalez, Filipa Godinho, Sara Inês, Nuno Pires e Diogo CostaTeatro Maria Vitória; Parque Mayer, Lisboa; T.213 475 454. Qui-Dom. às 21h30 e Sáb. e Dom. às 16h30. 12,5€ a 25€.