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Teatral-Mente Opinando 17 | Shakespeare ao som de gargalhadas

Teatro Tivoli BBVA. 15 de Fevereiro de 2015 (16h30). Sala cheia.

Quem se senta numa plateia para assistir a As Obras Completas de William Shaspeare em 97 Minutos, menos de duas horas depois, sai da sala com uma generosa barrigada de riso, com as mãos aquecidas pelas ovações e com uma justificação evidente para os mais de 15 anos de carreira desta brilhante encenação do genial texto de Adam Long, Daniel Singer e Jess Borgeson, que Célia Mendes traduziu extraordinariamente para a língua de Camões - que durante a representação iremos descobrir que é o Shakespeare português, só que sem um olho (ou vice-versa).
Trata-se, pois, de um espectáculo hilariante, desopilante e genial! Condensar todas as obras de Shakespeare em 97 minutos - "mais coisa menos coisa" - é tarefa nada fácil... E arrancar gargalhadas constantes à plateia, com esse "resumo" seria ainda mais complicado. Mas entre o complicado e o impossível existe um pronunciado fosso, que os autores, actores e encenador ultrapassaram, com distinção! E a prova está nesta brilhante comédia onde, em ritmo desenfreado, somos levados numa montanha-russa de risos, sorrisos e aplausos.
Numa peça que decorre em jeito de Revista à Portuguesa - mas sem plumas, cenografia faustosa e escadarias - , fazemos uma delirante viagem pelas comédias, tragédias, enfim, pela obra de Shakespeare, com um delicioso tempero de larachas à actualidade política e social, mas não sem antes serem testados os nossos próprios conhecimentos sobre a obra do autor e sem nos ser lida a sua biografia, extraída de uma fonte totalmente fidedigna, que dá pelo nome de Wikipédia, e onde ficamos a saber que Shakespeare invadiu a Polónia, despoletou a 2ª Guerra Mundial e, imagine-se, foi amante de Eva Péron. E a partir daí, começa a verdadeira aventura! 37 obras em menos de duas horas! Começamos por um Romeu e Julieta, onde o apaixonado só quer mesmo é levar a donzela para a cama, passamos por um TitoAndrónico transformado num televisivo programa de culinária, por um Otelo, o Mouro de Veneza que, devido às limitações físicas que se impõem é-nos apresentado através de um rap e, depois de muitas e originais apresentações das obras Shakespereanas, culminamos com uma representação de Hamlet que coloca o público ao barulho e se traduz no auge da gargalhada.
São três os brilhantes actores que nestes 97 minutos se multiplicam em príncipes, soldados, princesas, rainhas, velhotes, enfim, em toda essa plêiade de figuras que povoa o universo Shakespereano, e dão vida a um texto que nunca se torna enfadonho e prende pelas mil e uma maneiras - cada qual mais original que a anterior - de nos levar a um universo que até poderia ser enfadonho. São eles André Nunes, Tiago Aldeia e Telmo Ramalho. Ao primeiro cabem quase todos os travestis - raparigas de voz aguda e vómito pronto a saltar para a plateia - o que o faz ficar farto da sua função, levando-nos um intervalo, que seria até dispensável, dada a forma como a peça empolga o espectador. Todos eles são geniais nas suas criações, em interpretações delirantes e brilhantes em comunicabilidade e timing. São, diga-se de passagem, mestres em fazer soltar vendavais de gargalhadas e estrondosas ovações, que coroam as suas (totalmente conseguidas) intervenções, que mantêm acesa a chama de um espectáculo que teria tudo para ir "arrefecendo", mas que se liberta daquela que seria uma quase condição.
Mas deve-se isso, também, à magnífica encenação do extraordinário Juvenal Garcês, que nos oferece um dos melhores trabalhos de que há memória na área de encenação. Encenar uma comédia onde se resumem 37 obras e não dar azo a espaços mortos é verdadeiramente louvável e o encenador cumpriu, com mestria, essa função, sendo merecedor das maiores e mais honrosas menções, que serão sempre insuficientes para parabenizar tão meticuloso e genial trabalho.
O modesto cenário e os figurinos - elementos indispensáveis à acção - , da autoria de Luciano Cavaco, são eficazes e, diga-se em abono da verdade, os segundos contribuem também para esse vendaval de gargalhadas que é a peça, pois torna-se impossível não rir ao ver qualquer um dos actores travestir-se "alarvemente" para se transformar, por exemplo, em Julieta.
Em suma, As Obras Completas de William Shakespeare em 97 Minutos é uma peça capaz de mandar para segundo plano qualquer depressão, oferecendo-nos de bandeja cerca de uma hora e quarenta e cinco minutos de riso total e feliz e um punhado generoso de muito boa disposição, servindo, cumulativamente, o Teatro, sem se servir dele. Esperemos agora que uma nova temporada da peça se abeire, para protelar aquele que é já um dos maiores êxitos de que há memória na história dos nossos palcos e para continuar a pôr um país cinzento e sisudo à gargalhada. · As Obras Completas de William Shakespeare em 97 Minutos > De Adam Long, Daniel Singer e Jess Borgeson; enc. de Juvenal Garcês; figurinos e cenário de Luciano Cavaco; tradução de Célia Mendes; produção UAU; com André Nunes, Telmo Ramalho e Tiago Aldeia. Sem espectáculos agendados para breve.