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Teatral-Mente Opinando 19 | Ana Bola Sem Filtro aos 40 anos de carreira


Teatro Villaret. 2 de Março de 2015 (21h30). Sala cheia.

"Com um simples vestido preto, eu nunca me comprometo!". Não. Não é frase desta peça, nem vemos Ana Bola de vestido. Mas faz aqui todo o sentido, pois logo de início se vê que sem altos luxos nem artimanhas, vamos passar no Villaret um bom bocado.
Sem grandes cenários, com meia dúzia de adereços, mas acima de tudo com a "tarimba" de uma grande actriz, Ana Bola tem aqui um monólogo de sucesso, de muito sucesso.
Em reestreia nesta sala que Raul Solnado deu à capital, a actriz deixa o filtro em casa e traz-nos humor mordaz, irónico e naturalmente seu. Apresenta-se como ela mesma, Ana Bola, a fazer um casting para um programa de talentos. Nós, público, somos os figurantes. É a receita para arrebatar de imediato com esta peça de sua autoria e direcção de António Pires.
Aos 62 anos, vê-se, após uma carreira em que as inúmeras memórias de momentos risonhos na cabeça de tantos portugueses são o melhor atestado de qualidade, confrontada com a falta de trabalho. No entanto, não é isso que a faz parar. As ideias são muitas, apresenta propostas e tem projectos concretos, mas nada é aprovado pelas direcções das estações televisivas. Restam-lhe então os programas de talentos, para os quais se vai propor, fazendo um casting.
De imitações a um "Achas que sabes dançar com um bailarino muito... peculiar... escondido atrás do sofá", passa-se por tudo. Dança, cozinha, e até planos inclinados muito especiais.
Mas outra boa parte do humor acontece entre cada prova que vai sendo ordenada por uma misteriosa voz vinda da régie, Ana Bola, que não sei se já vos disse, tem 40 anos de carreira, vai falando, em tom de desabafo, connosco, os figurantes. Que já que estamos ali, pagos, a comer a nossa sandezinha de contraplacado com fiambre da quinta perna, "temos que levar com ela".
E então confessa-nos muitas coisas. Entre elas, uma atribulada ida com os pais ao Amadora-Sintra, e como ser a "Sô Dona Ana Bola" pode fazer a sala de espera de umas urgências ser muito menos demorada, isso, e claro, a vontade que dá de meter de vez em quando as pessoas dentro de uns tupperwares, desidratados, que depois quando quisermos tiramos cá para fora, põem-se de molho, incham, estão com a pessoa, e depois "ala, tupperware!".
É algures na divagação por estas ideias extremamente práticas que surge a vontade de criar uma empresa que revolucionaria com certeza todo o século XXI, sendo que era para se chamar Grupo Lena, mas entretanto o nome já está ocupado, Ana Bola apresenta-nos o revolucionário negócio de "Um Pano Encharcado na Tromba!", que como o nome indica, consiste em ir ao domicílio dar com o dito, por encomenda.
É com este humor acutilante, e com a mestria que realmente só uma Actriz digna desse nome tem, critica a actualidade sem se deixar cair em facilitismos de piadas feitas. É criticado o comodismo, são criticadas as injustiças e o panorama artístico, ou antes a falta dele, no quotidiano nacional. E com tanta graça e talento, são puxadas as linhas soltas que existem um pouco em todos nós.
É com um brilho que já tem, há muito, o seu cunho pessoal, que Ana Bola marca a diferença. Representa e escreve, e que bem que o faz, e "toureia as tábuas", sozinha. E a diferença está aqui. Ana Bola basta, por si só.
Fica, sem dúvida, o desejo de voltar a ver, porque de facto nos arrebata, sem precisar de brilhos e plumas. E que bom que é ser-se arrebatado assim. E fica também a vontade que o pano encharcado que esta peça se revela, e muito bem, na tromba de quem merece ser criticado, sirva de impulso à mudança que as justas críticas impelem.
Meus senhores, o melhor que temos a dizer é: Aprendam com a "Sô Dona Ana Bola". Brava! · Ana Bola Sem Filtro De e com Ana Bola; enc. de António Pires; produção Força de Produção e Buzico; com as vozes de Júlio Isidro, Alexandra Rosa e Manuel MarquesTeatro Villaret, Avenida Fontes Pereira de Melo 30-A, Lisboa; T.1820. Seg às 21h30. 10€.