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Flávio Gil | "O Teatro tem que despertar consciências!"

Aos 24 anos, Flávio Gil é já, indiscutivelmente, um dos maiores talentos da sua geração… Canta, dança e representa, sem mácula, e ao Teatro Musicado tem emprestado toda a sua garra. Agora, está pronto para novos desafios e, ao estrear o monólogo dramático Minha Senhora, prova que não só o Teatro de Revista compreende o seu talento mas que também noutros géneros pode brilhar.
Fala com a sua característica simpatia e traz consigo um sorriso, um brilho nos olhos e a alegria própria de quem trabalha por amor aos palcos e está diante de um futuro que só se pode adivinhar risonho, tal como ele.


Teatral-Mente Falando - Como surgiu esta Minha Senhora?
Flávio Gil - A Minha Senhora nasceu enquanto eu e a Marisa fomos assistir a um programa de televisão, que por acaso nem tem nada a ver com o assunto. Mas estávamos a conversar e foi quase um desafio que lhe lancei: “Porque é que não escreves um texto sobre este assunto?”. É um assunto um bocadinho marginalizado, porque é um estigma, e a Marisa de imediato achou que era bom poder fazer isso, propôs-se a fazê-lo e algum tempo depois - confesso que quando eu já nem esperava muito - ela mostrou-me o texto, eu fiquei imediatamente agarrado, disse logo “Olha é mesmo isto! Temos mesmo que fazer isto à tua maneira”. Sabia que ela também queria que fosse eu a fazê-lo, como actor, e depois, confrontados com a vontade de o fazer mas sem essa capacidade, porque não tínhamos sala, não tínhamos estrutura para o produzir convenientemente – porque percebemos que este é um assunto delicado e que deve ser tratado com o respeito e o cuidado que merece, sobretudo pelas pessoas que convivem com o VIH, que merecem esse respeito – lembrei-me que, com certeza, os parceiros ideais eram a ABRAÇO, que são a associação que trabalha com isto diariamente. Lançámos a proposta à ABRAÇO, que a agarrou de imediato, deu-nos as mãos, confiaram em nós de olhos fechados, desde o princípio, e depois foi um processo de dois ou três meses até chegarmos aqui, à véspera de estreia.

- Sente que este espectáculo tem uma obrigação social?
- Tem, sobretudo, uma mensagem que pode passar quase pela cidadania. Nós queremos deixar a mensagem de que o VIH existe, mas não é um bicho papão. Claro que temos que trabalhar, sobretudo, na sua prevenção, mas quando ele já existe e quando já convivemos com ele, é algo com que se pode conviver, hoje em dia as terapêuticas já permitem apenas uma toma diária para os seus portadores… Portanto, há uma mensagem de esperança. É essa a nossa mensagem. Claro que ao longo da peça confrontamos o público com a parte má da doença, mas depois a mensagem final é de esperança, de que “Isto existe, mas eu também existo! O eu portador não deixo de existir, não passo para segundo plano, a partir do momento em que o VIH existe na minha vida. Pelo contrário!”.

- A peça terá, portanto, a missão de mexer com os espectadores…
- Sim, é uma peça emotiva, inevitavelmente, e é uma peça que eu não consigo fazer sem me render um bocadinho às emoções, porque acho que qualquer pessoa se se debruçasse um bocadinho sobre este assunto, se pensar nele profundamente, se comove facilmente. Acho que agita-nos um bocadinho as emoções, porque é o tu confrontares-te com uma realidade que é definitiva! Algo que chega à tua vida, que não tem tantas coisas boas assim e que tu não podes evitar nem afastar, por muito que queiras. E se nos confrontarmos com todas as adversidades que o VIH traz à vida de alguém, se pensarmos nisso, se nos concentrarmos nisso, eu acho que é fácil ficarmos um bocadinho comovidos e, portanto, a peça é naturalmente muito emotiva, mas eu espero conseguir tocar as pessoas um bocadinho todos os dias.

- Minha Senhora traz para o palco um assunto tão falado e ainda tão polémico como o VIH. O Teatro continua a ser um excelente veículo para despertar consciências e abrir mentalidades?
- O Teatro tem que despertar consciências! Eu acho que nós temos, mais do que essa oportunidade, essa responsabilidade. Quando digo nós, é nós os profissionais do espectáculo, em geral, não só do Teatro. Quando temos a facilidade de ter o público connosco, de chegar ao público, também temos a responsabilidade de lhe dizer alguma coisa e acho que temos é que depois escolher qual é a nossa mensagem e o que é que queremos dizer. Eu acho que neste espectáculo, se temos a oportunidade de divulgar o trabalho da ABRAÇO, de chegar a mais pessoas, tu imediatamente, a partir do momento em que vês esta peça, está desperta a tua consciência para os perigos - não só do VIH, como de outras DST e de outras doenças transmissíveis não só sexualmente – e isto já é trabalho de prevenção. Despertar as consciências para que isto existe e que temos que evitá-lo, prevenindo.

- Na sinopse lemos que esta é uma história de “um amor nascido por obrigação”. O VIH pode ser entendido dessa forma?
- Aqui, a autora, a Marisa, transformou este VIH numa eterna companheira, que no fundo é o que é. É algo de que não nos podemos separar mesmo que queiramos e, por isso, a Marisa deu-lhe esta poesia e é isso que a peça apresenta, com os prós e contras disso, de teres que partilhar a tua vida com alguém, quer queiras quer não, e tudo o que isso tem de bom e tem de mau. Claro que no fim a mensagem é de esperança e é que, sobretudo, podemos conviver com ela e mesmo assim encontrar o nosso caminho para a felicidade, com ela e apesar de.

- Depois de vários espectáculos na área do Teatro Musical e do Teatro de Revista, estrear este monólogo é sinónimo de dar um passo para fora da “zona de conforto”?
- É um passo enorme para fora da zona de conforto, muito para fora da zona de conforto. Mas isso é o que me deixa mais motivado ao mesmo tempo. Eu tinha muita vontade de fazer alguma coisa fora dessa “zona de conforto” -  que nunca o é porque estamos sempre a redescobrir-nos e a querer sempre fazer melhor - , mas era a zona em que eu já tinha algum caminho percorrido e isto foi um desafio enorme… E chegar aos ensaios e perceber que estava longe de conseguir algumas coisas mas depois o nosso encenador, que é o Paulo César, ajudou-me muito a conseguir chegar a muitos lugares onde eu não sabia que podia chegar e isso foi bom também, fazer essa descoberta. E por aí, enquanto actor, acho que já ganhei. Agora, não sei se estou a fazer isto bem… Quero muito fazer isto bem, era uma coisa que eu queria muito fazer – não tinha necessariamente de ser neste espectáculo, mas tinha vontade de fazer algo diferente daquilo a que estou habituado – e isto ao mesmo tempo traz-me essa satisfação pessoal, essa realização deste projecto.

- Qual o maior desafio no processo de criação e construção desta personagem e da peça?
- O maior desafio é tentar pôr-me no lugar deste indivíduo que se descobre portador do VIH, porque eu só posso imaginar o que se possa sentir, não posso ter a certeza do que se sente nesse momento e esse é o maior desafio. Claro que falei com psicólogos, fiz o trabalho que podia junto das pessoas que trabalham directamente com portadores, para perceber o que é que eles me transmitiam sobre o que estas pessoas sentem. E tentei transportar isso para este personagem. Faço à imagem daquilo que eu acho que possa ser a verdade, porque o que eu quero, sobretudo, é transmitir verdade com este espectáculo.

- Em que medida evoluiu enquanto actor com esta Minha Senhora?
- É dar um passo numa direcção completamente contrária à que tenho dado. No fim, na pior das hipóteses, até pode servir para perceber que não posso fazer este género de espectáculos. Espero que não, mas tenho a certeza que cresci como actor. Isso tenho a certeza! Cresci em consciência, cresci em competência, tenho a certeza que me propus a fazer coisas que até aqui achava que não fazia ou que não me tinha ainda passado pela cabeça fazer. Aí acho que o meu salto pessoal já é positivo. E agora estou muito motivado para fazer este espectáculo e, sobretudo, com muita vontade de o fazer bem, mas isso depois o público dirá.

- Estar sozinho em cena agrava os nervos?
- Agrava! A contracena faz muita falta. É tão mais fácil representar com os outros… São tão importantes como nós, mesmo que nós sejamos protagonistas. O que o outro nos dá ajuda-nos a fazer melhor o nosso trabalho e aqui não há outro e isso é também uma das grandes dificuldades.

- Agora que a estreia se aproxima a passos largos, quais são os medos e as expectativas para esta temporada?
- Os medos são todos os que se possa imaginar. As expectativas são de que não corra assim tão mal, de isto que possa correr bem… A minha principal expectativa – e é isso que este espectáculo me dá oportunidade – é de que eu vou ter a oportunidade de fazer chegar às pessoas a mensagem de uma associação que trabalha diariamente com portadores de VIH. Vou todos os dias conseguir que as pessoas retirem deste espectáculo que o VIH existe, a ABRAÇO também e trabalha a favor das pessoas que têm esse problema. E, à parte disso, já há o contributo imediato das pessoas na compra do seu bilhete, que reverte a favor da ABRAÇO. Portanto, aqui sinto que metade da minha função já está cumprida e isso deixa-me tranquilo.

- Uma vez que o VIH faz parte de um leque de temas abordados nos estabelecimentos de ensino, seria interessante levar este espectáculo até às comunidades educativas? É uma hipótese a considerar?
- Eu gostava… Este ano já não dá, mas agora para o próximo ano lectivo… Aliás, temos falado com a ABRAÇO nesse sentido e eu acho que querem que esta peça chegue a todos os lugares possíveis. Claro que dentro da comunidade escolar faria todo o sentido porque é quase uma estratégia de prevenção, o despertar da consciência para esta realidade, e tu ficas atento e acho, honestamente, que funciona como estratégia de prevenção e nesse sentido faz mais sentido ainda estar junto das escolas.

Veja a entrevista online em www.youtube.com/teatralmentefalando .