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Teatral-Mente Opinando 22 | A viagem de Peer Gynt ou uma metáfora de todos nós

Teatro Municipal Mirita Casimiro. 2 de Agosto de 2015 (16h). Mais de meia sala.

Para comemorar os seus 50 anos de actividade, o Teatro Experimental de Cascais preparou, em boa hora, a peça Peer Gynt, o clássico poema dramático da autoria do norueguês Ibsen. Intenso e complexo, este é um texto incapaz de deixar, seja quem for, indiferente, que possui um incrível paralelismo entre o tempo da acção e os  dias em que vivemos, numa pungente crítica político-social. Em quase quatro horas, que se poderiam revelar bastante longas mas que, ao invés disso, passam a voar, somos levados em viagem com Peer, acompanhando as suas aventuras, venturas e desventuras.
Na sessão a que tivemos a oportunidade de assistir, o protagonista – que baptiza a peça - esteve entregue a André Leitão. Na pele de alguém que, seguindo a lei do “sê apenas tu mesmo” – com tudo o que isso acarreta… desvarios, sonhos, prazeres e fantasias - e para quem a efabulação é mais preponderante do que a realidade, o jovem actor (e escreva-se actor com toda a propriedade da palavra) arrebata a plateia numa inefável interpretação, digna dos melhores. Empolgante, enérgico, emocionante, provocante… Um Peer Gynt absolutamente genial! A ele lhe cabe a tarefa de dar vida à figura que é, afinal, personagem-metáfora de todos nós.
Maria Vieira surge-nos dando corpo e (muita) alma à mãe do protagonista, quiçá na mais surpreendente figura da sua vasta galeria de personagens. A sua Aase é uma lição de representar, avassala a plateia desde a sua entrada e até ao culminar do 1º Acto, onde a sua morte deixa o público rendido à sua força dramática, emocionante e arrepiante. O seu trabalho é um modelo de composição, cuidada até aos últimos e mais pequenos detalhes, servindo de forma magistral a personagem a que Ibsen deu voz. Que apaixonante é aquela mulher que a vida tanto calejou, frágil aparentemente, uma rocha na sua perseverança e força. Esse misto de fragilidade e fortaleza transmite-nos uma ternura e admiração enorme por alguém que tanto sofreu e que ama incondicionalmente o seu filho, com tudo o que isso implica (carinho e reprimenda), e engrossa a desmedida admiração e carinho pela maravilhosa senhora actriz que é a querida Parrachita, como todo o público a conhece.
O restante elenco – onde sobressai ainda (no caso da sessão que aplaudimos) a jovem Filipa Correia, que prova, no papel da doce donzela Solveig, a amada de Peer, ser uma actriz em franca ascenção – merece a sincera e estrondosa ovação da plateia, pela entrega, pela dedicação, pelo amor ao Teatro e pelo profissionalismo que empregam em cada personagem que lhes é distribuída, numa prova de fogo que marca o final do seu curso na Escola Profissional de Teatro de Cascais. Apesar de haver a possibilidade de aparentar isso mesmo, nenhuma figura está ali por mero acaso e todas sofreram um cuidado e minucioso trabalho… Nesse aspecto, há que destacar, entre muitas, a admirável cena do Manicómio. Todos os papéis são criteriosamente estudados, numa pormenorização que chega a ser arrepiante de tão perfeita e magnífica.
Um elogioso sublinhado para o excelente trabalho de Miguel Graça, que, cuidadosamente, assina a versão e dramaturgia do texto, trabalho que se poderia ter revelado ingrato, dado o calibre do clássico, mas que foi cumprido com distinção. Não se acredita que seja possível um único espectador não levar consigo uma mensagem, uma frase, um motivo de reflexão, porque, na verdade, a viagem de Gynt poderá bem surgir como metáfora à vida de qualquer espectador, com todos os seus altos e baixos, batalhas, vitórias e derrotas e a busca constante pelo “Quem sou eu?” transpostas para uma criação de enorme riqueza. 
No que diz respeito à parte plástica – deixada ao encargo de Fernando Alvarez - a produção conta com um guarda-roupa que cumpre bem, merecendo elogio, e dispõe de uma eficiente cenografia, que aposta na sugestão do espaço – o que põe à prova, também, a imaginação de quem assiste - e deixa de parte a recriação do mesmo, apoiada pelo singelo desenho de luz, alguns adereços de cena e pela preponderante banda sonora  de Grieg. As rápidas mutações cénicas, por mais “insignificantes” que possam parecer, merecem uma assinalável nota, pela eficiência com que são efectuadas, sobretudo aquelas que decorrem aos olhos do público e que, certamente auxiliadas pelo talento de Natasha Tchitcherova (coreografia) e Helena Vascon e Nicolau Antunes (movimento), são feitas com inteligência. Note-se, por exemplo, a saída de cena do “porão”, onde o mesmo é transportado para os bastidores aos “zigue-zagues”, sugerindo a tempestade que decorria.
Por último, a merecida ovação à fascinantemente brilhante encenação do Mestre Carlos Avilez, possivelmente o mais extraordinário dos encenadores portugueses da actualidade. Pouco há para dizer da já conhecida e reconhecida genialidade de um homem que sabe colocar cada actor dentro da sua personagem, mas de forma a que nela habite… Não forçando esse “conhecimento mútuo”, mas apresentando “actor-personagem”, e vice-versa, e explicando-os. Que bom e que orgulho é ter em Portugal um encenador tão grandioso como Mestre Avilez! Também a ele, o nosso maior aplauso.
Em suma, Peer Gynt é um extraordinário momento onde a arte de representar é a grande protagonista, fruto do amor de uma companhia que merece uma gloriosa ovação pelo seu meio século a lutar pelo bom Teatro Português e onde, ao mesmo tempo, está bem patente a competência do trabalho desenvolvido pela Escola Profissional de Teatro de Cascais na tarefa de bem ensinar a subir ao palco e a dar corpo e alma a uma personagem! Que o público seja merecedor desta companhia e dos jovens actores que emprestaram toda a sua arte, talento e trabalho a este projecto.
Bravos muitos e ainda mais aplausos… De pé! · Peer Gynt > De Ibsen, versão e dramaturgia de Miguel Graça, enc. de Carlos Avilez, cenografia e figurinos de Fernando Alvarez, música de Grieg; coregrafia de Natasha Tchitcherova; produção do Teatro Experimental de Cascais; com Maria Vieira, António Marques, Bruno Bernardo, Fernanda Neves, Filipe Abreu, João Cachola, João Vasco, Luiz Rizo, Teresa Côrte-Real, Sérgio Silva, Miguel Leitão, José Condessa e alunos da EPTC. Teatro Municipal Mirita Casimiro; Avenida Fausto Figueiredo, 296, Monte Estoril; T.214 670 320. Ter-Sáb. às 21h e Dom. às 16h. 10€.