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Teatral-Mente Opinando 26 | A Revista volta a brilhar no Parque Mayer

Teatro Maria Vitória. 21 de Fevereiro de 2016 (21h30).

O Teatro Maria Vitória é, por excelência, a catedral da Revista à Portuguesa. Aliás, é já difícil perceber onde “acaba” o Maria Vitória e começa a essência da Revista, e vice-versa, e achar um ponto onde termine essa fusão. E graças a esse grupo de lutadores da catedral, Lisboa tem, finalmente, Revista! Revista nos moldes que lhe são tão característicos e que se lhe foram colando à pele em sucessivos baptismos – sempre com a cumplicidade do público fiel - que a transformaram naquilo que é hoje, tal como a conhecemos, com a sua vivacidade desconcertante, as suas cores garridas, a sua mordacidade e acutilância e o seu quê de atrevida, com eternos laivos de gaiata irrequieta.
Revista Quer... É Parque Mayer!. E se durante anos o “espaço físico” convidava pouco a visitas, hoje já não se pode dizer o mesmo. O Parque lavou o rosto, vai-se despindo de pedras e entulhos e perfila-se para um futuro bem mais risonho, com o Capitólio a reacender as suas luzes e a, brevemente, reabrir as suas portas e um Maria Vitória pintado de fresco e bem mais vibrante. Mas, mais do que o espaço, o título alude à magia que o Parque ainda conserva e que continua a palpitar no coração dos amantes daquele espaço e da Revista à Portuguesa, que ali continua a perfumar-se mais a Lisboa. E, por muito que o recinto esteja ainda a voltar a “vestir-se”, dentro do Maria Vitória as luzes, as cores, os telões, as lantejoulas e as plumas casam-se e todos aqueles que lá passam atiram dias cinzentos para trás das costas e permitem-se a sonhar durante quase três horas de riso total e feliz. 
Assim tem sido e assim é com o novo espectáculo que reacendeu as luzes da catedral e, no seu título, passa essa mesma mensagem. Trata-se de um projecto de amor e é esse amor que se nota em palco. O amor de eternos apaixonados pelo Teatro de Revista, que dão as mãos pelo Teatro, põem ao seu serviço a força, o empenho e a garra que lhes são próprios e nos oferecem uma peça onde sonhar e rir são as palavras de ordem… E o resultado final é um brilhante, luxuoso e moderno espectáculo, com um “menu” equilibrado e diversificado, popular na dose certa e hilariante como sempre deve ser, onde desfilam a ritmo alucinante os quadros que fazem um “flash” sobre o quotidiano, recheados com a indispensável crítica social e política, com a orelhuda música que se leva no ouvido e se trauteia à saída e, sobretudo, com muito boa-disposição. Com todas as armas apontadas ao sítios certos, Revista Quer... É Parque Mayer! reuniu todos os argumentos para superar a antecessora produção e suplantou com mestria a tarefa.
É justo aplaudir o trabalho notável dos autores – onde se juntou, uma vez mais, a mestria de Mário Rainho, esse incansável mestre da arte de Talma que, para além de assinar o texto, encenou, dirigiu e coordenou o espectáculo com o brio que lhe é inato; e a frescura de Flávio Gil -, a quem se deve um bom punhado do êxito do produto final e que souberam servir os intérpretes e o público com textos onde a inteligência não se alheia da graça, do picante, da crítica, com aguçado sentido de observação da nossa realidade. Conjugado com a excelência de um bom texto, o Teatro de Revista quase sempre traz uma música alegre e neste Revista Quer… É Parque Mayer!, a melodia não foi deixada ao acaso e, pela mão de Eugénio Pepe, Hugo Neves Reis e Pedro F. Sousa, o público leva a ecoar na memória algumas das canções que rematam os quadros, os finais ou os refrões dos fados, como convém.
A julgar pela plateia recheada de públicos mais jovens, pode bem afirmar-se que não conseguirão nunca os detractores enterrar essa parte tão saborosa da alma de Lisboa… Há cada vez um público mais jovem para a Revista! E mais delicioso é ver que, dentro daquele espaço, o público mais novo dá as mãos ao público mais velho e todo comungam da mesma magia: a magia de uma noite de Revista. Enquanto os mais jovens bebem as cores da catedral, sonham e questionam sobre um passado ainda palpitante, os mais velhos esclarecem as perguntas com saborosas recordações que teimam em assaltar as suas memórias, despertadas pela aconchegante sala, pelas fotografias espalhadas pelas paredes e pelo cheirinho a magia. Até que as pancadas de Moliére dão as boas-vindas ao público, a sinfonia de abertura, misturada com as mil e uma coloridas luzes transmitem vida feita sonho no coração de todos… E a partir daí é um “Viva a Revista!” da Abertura à Apoteose, com a plateia a premiar com aplausos e carinho o elenco que lhes dá o braço, a sorrir.
Mariema é unanimemente considerada uma das últimas grandes vedetas do Teatro Musicado e surge-nos como principal atraçcão de um elenco feliz e coeso. Depois do regresso ao seu género em duas digressões e de uma incursão num outro projecto no Nacional, ei-la de regresso ao seu Parque Mayer e ao seu Maria Vitória... Sobre aquelas quarteladas, debaixo daqueles projectores, foram milhares as noites em que a sua glória subiu aos píncaros e foi ali mesmo que atirou para a plateia e da plateia fez saltar para a rua esse fado canção que virou hino e que até hoje todos trauteiam sem falhar: «O Fado Mora em Lisboa». Neste feliz regresso tem a seu cargo dois momentos em que deixa o público rendido à sua presença lendária e à sua mágica, aplaudidos freneticamente noite após noite. O primeiro («Eu Não Sou a Vedeta»), na sua própria pele, num terno momento polvilhado de recordações e saudades, e o segundo na pele de uma Mendiga, num inteligente quadro de crítica política. Bem defendida e protegida no seu trabalho, apesar de alguma fragilidade natural, a maravilhosa actriz volta a abraçar o seu público, que tantas saudades tinha, num almejado regresso.
Paulo Vasco é já cartão-de-visita do Maria Vitória, fabricante nato do riso, e tem neste espectáculo números populares onde brilha bem ao seu estilo, sem mácula, ganhando o público pela sua capacidade de comunicabilidade com a plateia, essa alegria comunicativa que o público tanto aprecia, público que de imediato se prende à genica e graça que emprega nas suas criações, não lhe regateando ovações nem carinho. Se no primeiro Acto nos surge na divertida figura de um cuco ou na já habitual e sempre bem conseguida chefia do Quadro de Rua, o hilariante «Quiosque da Maluda» - onde, com Flávio Gil, forma a dupla de compères mais divertida dos últimos tempos, demonstrando uma enorme cumplicidade em cena e jogando com ela a favor do texto -, no segundo acto do espectáculo tem o seu momento alto com uma hilariante caricatura de Maria Cavaco Silva, num conseguido momento de contundente crítica política que leva a plateia ao rubro com a sua interpretação, num verdadeiro festival de gargalhadas.
Alice Pires está de regresso à sua “casa” e não poderia ter retornado em melhor altura. Entrega-se de corpo e alma a cada figura que lhe foi distribuída, compondo diversas personagens com a sua maneira muito própria de criar bonecos, característica e popular como só ela e a arrancar gargalhadas com a sua Vanessa, no Quadro de Rua, ou com a sua Zarolha no Quarteto Final. Mas é quando canta, com toda a sua alma e o seu quê de bairro e de castiço, que a sua presença mais fascina e temos a rara sensação de ver o fado à nossa frente, nesses momentos mágicos em que a nossa canção, simplesmente, “acontece”. Pode bem dizer-se que com Alice Pires a peça atinge o auge das suas características populares, porque toda ela é Lisboa e bairro da cabeça aos pés.
Mas, entre todos os nomes, há que louvar um que se destaca cada vez mais e sempre pela positiva, que o público já espera com entusiasmo e acarinha com aplausos e bravos: o jovem Flávio Gil. O seu nome é, por norma, o mais comentado nos intervalos e no final, acompanhados de um sorriso e rasgados elogios. Flávio é um caso raro de talento, de graça e de empatia com a plateia, aos quais alia a juventude, a garra, a simpatia, a beleza e o inegável amor às tábuas…
Tem a seu cargo alguns dos momentos mais altos e desdobra-se em criações antológicas, desmonstrando cabalmente as suas admiráveis capacidades. É ele que abre o espectáculo e, a partir daí, leva o público de braço dado consigo em mil e uma figuras que soube criar com mestria, como é o caso do seu Boticário ou do exagerado – um dos momentos mais divertidos de todo o espectáculo. Tão bem sabe fazer o público gargalhar, como consegue mudar de registo num ápice e protagonizar momentos mais sérios, como é o caso do caso do importante quadro «Lesados do Banco». Todo ele respira palco. É feito da mesma “massa” daquelas vedetas maiores que ficaram para sempre gravadas a letras de ouro na história do Teatro Português e, depois disto, pouco mais seria necessário acrescentar. Que o público continue sempre a saber prestigiá-lo e merecer a sua entrega e talento.
Filipa Godinho transita do elenco da revista anterior. Chegou, viu, trabalhou, venceu e convenceu com o seu talento, a sua graça, a vivacidade, o respeito pelo público e a veia popular e ladina. Ao talento e beleza, alia a juventude, a garra e a simpatia e promete firmar-se na plêiade dos nomes que deram ao Teatro um tom mais brilhante. E justo destacar a sua divertida tia maníaca e, sobretudo, a gaga, no número «A Nossa Marcha é Linda».
Ao palco do Maria Vitória chegou ainda o talento de quatro promissores jovens, cuja entrega e presença o público sabe premiar com aplausos. Rubén Dias, Maria Giestas, Pedro Silva e Patrícia Teixeira pisam as tábuas com a entrega, o respeito e o profissionalismo que ele merece e é fácil reconhecer capacidades que o tempo e novas oportunidades irão limar – com especial destaque para Pedro Silva, que mostra ter uma particular e muito promissora veia revisteira que, certamente, o levará a outros voos mais altos, e a jovem Patrícia Teixeira, que convence pela jovialidade pela presença bonita e ladina e pelo potencial que é fácil reconhecer-lhe – e a entrega irá aguçar, na certeza de que a revista continuará de boa saúde com sangue em constante renovo.
Há ainda um jovem Corpo de Baile, a cumprir de forma desenvolta a coreografia de José Carlos Mascarenhas, que serve o propósito, apesar de não primar por assinaláveis inovações ou momentos altos. Apesar de não tão bem servidos como poderiam ter sido, os Happy Dancers imprimem ao espectáculo uma frescura e jovialidade agradável, como é apanágio.
Esteticamente, a Catedral da Revista oferece-nos, no geral, um espectáculo alegre e elegante nas suas cores vivaças e traços cuidados, emoldurada pelos grandiosos cenários de nomes maiores como José Costa Reis, Helena Reis, Eduardo Cruzeiro, António Casimiro, Moniz Ribeiro e Avelino do Carmo, que se conjugam com um guarda-roupa que, pelas valiosas mãos da Mestra Rosário Balbi, trazem às luzes da ribalta figurinos que, na sua grande maioria, enchem o olho e marcam a cena pela elegância, sem excessivo e desnecessário arrojo, doseando brilhos, pedras, plumas e outros apetrechos na dose certa para fazer brilhar os olhos e fascinar. Entre tantos números, é inevitável o destaque especial para o luxuoso final do primeiro Acto, onde os figurinos do jovem e talentoso Bruno Guerra casam com os cenários do genial Mestre José Costa Reis, numa fusão que deu azo ao mais bonito e faustoso final que passou pelo Parque desde há muito.
Por fim, uma palavra de estima e carinho ao produtor Hélder Freire Costa que, num louvável e titânico esforço, se continua a bater por reacender as luzes da velhinha mas sempre nova catedral.
Em suma, Lisboa tem na mão um espectáculo alegre nas suas cores, no seu ritmo e nas suas canções, a merecer o carinho e os aplausos de pé de salas lotadas, e que faz jus à certidão de nascimento daquele que é unanimemente considerado o mais genuíno género de Teatro Português – servindo-o como sempre deveria ser em todos os palcos - e aquele que o público continua a guardar no seu coração, com o carinho de sempre. · Revista Quer... É Parque Mayer! > De Mário Rainho e Flávio Gil; enc. de Mário Raínho; guarda-roupa pela Mestra Rosário Balbi; cenografia de Helena Reis, José Costa Reis, António Casimiro,Avelino do Carmo, Eduardo Cruzeiro e Moniz Ribeiro; coreografia de José Carlos Mascarenhas; música de Eugénio Pepe, Hugo Neves Reis e Pedro F. Sousa; produção Hélder Freire Costa; com Mariema, Paulo Vasco, Alice Pires, Flávio Gil, Filipa Godinho, Rúben Dias, Maria Giestas, Pedro Silva e Patrícia TeixeiraTeatro Maria Vitória; Parque Mayer, Lisboa; T.213 475 454. Qui-Dom. às 21h30 e Sáb. e Dom. às 16h30. 12,5€ a 30€.