Teatro Maria Vitória. 21 de Fevereiro de 2016 (21h30).
O Teatro Maria Vitória é, por
excelência, a catedral da Revista à Portuguesa. Aliás, é já difícil perceber onde
“acaba” o Maria Vitória e começa a essência da Revista, e vice-versa, e achar
um ponto onde termine essa fusão. E graças a esse grupo de lutadores da
catedral, Lisboa tem, finalmente, Revista! Revista nos moldes que lhe são tão
característicos e que se lhe foram colando à pele em sucessivos baptismos –
sempre com a cumplicidade do público fiel - que a transformaram naquilo que é
hoje, tal como a conhecemos, com a sua vivacidade desconcertante, as suas cores
garridas, a sua mordacidade e acutilância e o seu quê de atrevida, com eternos
laivos de gaiata irrequieta.
Revista Quer... É Parque Mayer!. E se durante anos o “espaço
físico” convidava pouco a visitas, hoje já não se pode dizer o mesmo. O Parque
lavou o rosto, vai-se despindo de pedras e entulhos e perfila-se para um futuro
bem mais risonho, com o Capitólio a reacender as suas luzes e a, brevemente,
reabrir as suas portas e um Maria Vitória pintado de fresco e bem mais vibrante.
Mas, mais do que o espaço, o título alude à magia que o Parque ainda conserva e
que continua a palpitar no coração dos amantes daquele espaço e da Revista à
Portuguesa, que ali continua a perfumar-se mais a Lisboa. E, por muito que o
recinto esteja ainda a voltar a “vestir-se”, dentro do Maria Vitória as luzes,
as cores, os telões, as lantejoulas e as plumas casam-se e todos aqueles que lá
passam atiram dias cinzentos para trás das costas e permitem-se a sonhar durante
quase três horas de riso total e feliz.
Assim tem sido e assim é com o novo
espectáculo que reacendeu as luzes da catedral e, no seu título, passa essa
mesma mensagem. Trata-se de um projecto de amor e é esse amor que se nota em
palco. O amor de eternos apaixonados pelo Teatro de Revista, que dão as mãos
pelo Teatro, põem ao seu serviço a força, o empenho e a garra que lhes são
próprios e nos oferecem uma peça onde sonhar e rir são as palavras de ordem… E
o resultado final é um brilhante, luxuoso e moderno espectáculo, com um “menu”
equilibrado e diversificado, popular na dose certa e hilariante como sempre
deve ser, onde desfilam a ritmo alucinante os quadros que fazem um “flash”
sobre o quotidiano, recheados com a indispensável crítica social e política,
com a orelhuda música que se leva no ouvido e se trauteia à saída e, sobretudo,
com muito boa-disposição. Com todas as armas apontadas ao sítios certos, Revista Quer... É Parque Mayer! reuniu
todos os argumentos para superar a antecessora produção e suplantou com mestria
a tarefa.
É justo aplaudir o trabalho
notável dos autores – onde se juntou, uma vez mais, a mestria de Mário Rainho,
esse incansável mestre da arte de Talma que, para além de assinar o texto,
encenou, dirigiu e coordenou o espectáculo com o brio que lhe é inato; e a
frescura de Flávio Gil -, a quem se deve um bom punhado do êxito do produto
final e que souberam servir os intérpretes e o público com textos onde a
inteligência não se alheia da graça, do picante, da crítica, com aguçado sentido
de observação da nossa realidade. Conjugado com a excelência de um bom texto, o
Teatro de Revista quase sempre traz uma música alegre e neste Revista Quer… É Parque Mayer!, a melodia
não foi deixada ao acaso e, pela mão de Eugénio Pepe, Hugo Neves Reis e Pedro
F. Sousa, o público leva a ecoar na memória algumas das canções que rematam os
quadros, os finais ou os refrões dos fados, como convém.
A julgar pela plateia recheada de
públicos mais jovens, pode bem afirmar-se que não conseguirão nunca os
detractores enterrar essa parte tão saborosa da alma de Lisboa… Há cada vez um
público mais jovem para a Revista! E mais delicioso é ver que, dentro daquele
espaço, o público mais novo dá as mãos ao público mais velho e todo comungam da
mesma magia: a magia de uma noite de Revista. Enquanto os mais jovens bebem as
cores da catedral, sonham e questionam sobre um passado ainda palpitante, os
mais velhos esclarecem as perguntas com saborosas recordações que teimam em
assaltar as suas memórias, despertadas pela aconchegante sala, pelas
fotografias espalhadas pelas paredes e pelo cheirinho a magia. Até que as
pancadas de Moliére dão as boas-vindas ao público, a sinfonia de abertura, misturada
com as mil e uma coloridas luzes transmitem vida feita sonho no coração de
todos… E a partir daí é um “Viva a Revista!” da Abertura à Apoteose, com a plateia a premiar com aplausos e carinho o
elenco que lhes dá o braço, a sorrir.
Mariema é unanimemente
considerada uma das últimas grandes vedetas do Teatro Musicado e surge-nos como
principal atraçcão de um elenco feliz e coeso. Depois do regresso ao seu género
em duas digressões e de uma incursão num outro projecto no Nacional, ei-la de
regresso ao seu Parque Mayer e ao seu Maria Vitória... Sobre aquelas
quarteladas, debaixo daqueles projectores, foram milhares as noites em que a
sua glória subiu aos píncaros e foi ali mesmo que atirou para a plateia e da
plateia fez saltar para a rua esse fado canção que virou hino e que até hoje
todos trauteiam sem falhar: «O Fado Mora em Lisboa». Neste feliz regresso tem a
seu cargo dois momentos em que deixa o público rendido à sua presença lendária
e à sua mágica, aplaudidos freneticamente noite após noite. O primeiro («Eu Não
Sou a Vedeta»), na sua própria pele, num terno momento polvilhado de
recordações e saudades, e o segundo na pele de uma Mendiga, num inteligente
quadro de crítica política. Bem defendida e protegida no seu trabalho, apesar
de alguma fragilidade natural, a maravilhosa actriz volta a abraçar o seu
público, que tantas saudades tinha, num almejado regresso.
Paulo Vasco é já cartão-de-visita
do Maria Vitória, fabricante nato do riso, e tem neste espectáculo números populares
onde brilha bem ao seu estilo, sem mácula, ganhando o público pela sua
capacidade de comunicabilidade com a plateia, essa alegria comunicativa que o
público tanto aprecia, público que de imediato se prende à genica e graça que
emprega nas suas criações, não lhe regateando ovações nem carinho. Se no primeiro
Acto nos surge na divertida figura de um cuco ou na já habitual e sempre bem
conseguida chefia do Quadro de Rua, o hilariante «Quiosque da Maluda» - onde,
com Flávio Gil, forma a dupla de compères mais divertida dos últimos tempos,
demonstrando uma enorme cumplicidade em cena e jogando com ela a favor do texto
-, no segundo acto do espectáculo tem o seu momento alto com uma hilariante
caricatura de Maria Cavaco Silva, num conseguido momento de contundente crítica
política que leva a plateia ao rubro com a sua interpretação, num verdadeiro
festival de gargalhadas.
Alice Pires está de regresso à
sua “casa” e não poderia ter retornado em melhor altura. Entrega-se de corpo e
alma a cada figura que lhe foi distribuída, compondo diversas personagens com a
sua maneira muito própria de criar bonecos, característica e popular como só
ela e a arrancar gargalhadas com a sua Vanessa, no Quadro de Rua, ou com a sua
Zarolha no Quarteto Final. Mas é quando canta, com toda a sua alma e o seu quê
de bairro e de castiço, que a sua presença mais fascina e temos a rara sensação
de ver o fado à nossa frente, nesses momentos mágicos em que a nossa canção,
simplesmente, “acontece”. Pode bem dizer-se que com Alice Pires a peça atinge o
auge das suas características populares, porque toda ela é Lisboa e bairro da
cabeça aos pés.
Mas, entre todos os nomes, há que
louvar um que se destaca cada vez mais e sempre pela positiva, que o público já
espera com entusiasmo e acarinha com aplausos e bravos: o jovem Flávio Gil. O
seu nome é, por norma, o mais comentado nos intervalos e no final, acompanhados
de um sorriso e rasgados elogios. Flávio é um caso raro de talento, de graça e
de empatia com a plateia, aos quais alia a juventude, a garra, a simpatia, a
beleza e o inegável amor às tábuas…
Tem a seu cargo alguns dos momentos mais
altos e desdobra-se em criações antológicas, desmonstrando cabalmente as suas
admiráveis capacidades. É ele que abre o espectáculo e, a partir daí, leva o
público de braço dado consigo em mil e uma figuras que soube criar com mestria,
como é o caso do seu Boticário ou do exagerado – um dos momentos mais
divertidos de todo o espectáculo. Tão bem sabe fazer o público gargalhar, como
consegue mudar de registo num ápice e protagonizar momentos mais sérios, como é
o caso do caso do importante quadro «Lesados do Banco». Todo ele respira palco.
É feito da mesma “massa” daquelas vedetas maiores que ficaram para sempre
gravadas a letras de ouro na história do Teatro Português e, depois disto,
pouco mais seria necessário acrescentar. Que o público continue sempre a saber prestigiá-lo
e merecer a sua entrega e talento.
Filipa Godinho transita do elenco
da revista anterior. Chegou, viu, trabalhou, venceu e convenceu com o seu
talento, a sua graça, a vivacidade, o respeito pelo público e a veia popular e
ladina. Ao talento e beleza, alia a juventude, a garra e a simpatia e promete
firmar-se na plêiade dos nomes que deram ao Teatro um tom mais brilhante. E
justo destacar a sua divertida tia maníaca e, sobretudo, a gaga, no número «A
Nossa Marcha é Linda».
Ao palco do Maria Vitória chegou
ainda o talento de quatro promissores jovens, cuja entrega e presença o público
sabe premiar com aplausos. Rubén Dias, Maria Giestas, Pedro Silva e Patrícia
Teixeira pisam as tábuas com a entrega, o respeito e o profissionalismo que ele
merece e é fácil reconhecer capacidades que o tempo e novas oportunidades irão limar
– com especial destaque para Pedro Silva, que mostra ter uma particular e muito
promissora veia revisteira que, certamente, o levará a outros voos mais altos,
e a jovem Patrícia Teixeira, que convence pela jovialidade pela presença bonita
e ladina e pelo potencial que é fácil reconhecer-lhe – e a entrega irá aguçar,
na certeza de que a revista continuará de boa saúde com sangue em constante
renovo.
Há ainda um jovem Corpo de Baile,
a cumprir de forma desenvolta a coreografia de José Carlos Mascarenhas, que
serve o propósito, apesar de não primar por assinaláveis inovações ou momentos
altos. Apesar de não tão bem servidos como poderiam ter sido, os Happy Dancers imprimem ao espectáculo
uma frescura e jovialidade agradável, como é apanágio.
Esteticamente, a Catedral da
Revista oferece-nos, no geral, um espectáculo alegre e elegante nas suas cores
vivaças e traços cuidados, emoldurada pelos grandiosos cenários de nomes
maiores como José Costa Reis, Helena Reis, Eduardo Cruzeiro, António Casimiro,
Moniz Ribeiro e Avelino do Carmo, que se conjugam com um guarda-roupa que,
pelas valiosas mãos da Mestra Rosário Balbi, trazem às luzes da ribalta
figurinos que, na sua grande maioria, enchem o olho e marcam a cena pela
elegância, sem excessivo e desnecessário arrojo, doseando brilhos, pedras,
plumas e outros apetrechos na dose certa para fazer brilhar os olhos e
fascinar. Entre tantos números, é inevitável o destaque especial para o luxuoso
final do primeiro Acto, onde os figurinos do jovem e talentoso Bruno Guerra
casam com os cenários do genial Mestre José Costa Reis, numa fusão que deu azo
ao mais bonito e faustoso final que passou pelo Parque desde há muito.
Por fim, uma palavra de estima e
carinho ao produtor Hélder Freire Costa que, num louvável e titânico esforço,
se continua a bater por reacender as luzes da velhinha mas sempre nova
catedral.
Em suma, Lisboa tem na mão um espectáculo alegre nas suas cores, no seu ritmo e nas suas canções, a merecer o carinho e os aplausos de pé de salas lotadas, e que faz jus à certidão de nascimento daquele que é unanimemente considerado o mais genuíno género de Teatro Português – servindo-o como sempre deveria ser em todos os palcos - e aquele que o público continua a guardar no seu coração, com o carinho de sempre. · Revista Quer... É Parque Mayer! > De Mário Rainho e Flávio Gil; enc. de Mário Raínho; guarda-roupa pela Mestra Rosário Balbi; cenografia de Helena Reis, José Costa Reis, António Casimiro,Avelino do Carmo, Eduardo Cruzeiro e Moniz Ribeiro; coreografia de José Carlos Mascarenhas; música de Eugénio Pepe, Hugo Neves Reis e Pedro F. Sousa; produção Hélder Freire Costa; com Mariema, Paulo Vasco, Alice Pires, Flávio Gil, Filipa Godinho, Rúben Dias, Maria Giestas, Pedro Silva e Patrícia Teixeira. Teatro Maria Vitória; Parque Mayer, Lisboa; T.213 475 454. Qui-Dom. às 21h30 e Sáb. e Dom. às 16h30. 12,5€ a 30€.